quarta-feira, 29 de junho de 2016

A flauta

 Resultado de imagem para fotos de flautas de cana
(foto google)

O tempo corria lento.
Agora, aposentado, tudo seria diferente. Ninguém previa o que iria acontecer, mas contava já ter tempo para fazer as coisas que mais gostava e que foi deixando para depois, para o tempo - Quando tivesse vagar. 
Haveria de poder fazer: 
Pinturas, desenhos, leitura ou até trabalhos com madeira e outros materiais. 
Sonhava ainda ter tempo para brincar com os netos. 
Quem sabe se eles lhe iriam ensinar coisas novas que ele nunca aprendeu?

Sentou-se na soleira da porta. O degrau servia-lhe de assento e a parede oferecia-lhe um suporte às suas costas cansadas.
Distraidamente ouvia os passarinhos à distância de um assobio e o seu olhar corria com lentidão todos os terrenos que se alongavam no horizonte. 
O seu quintal era tão pequeno nesta imensidão do mundo e da vida. Lá longe, mais ao fundo, as oliveiras bordavam de sombras o verde das searas. 
Agora já sem forças, aceitava aquele lugar onde antes não podia sentar-se e descansar.

Lentamente recordou os dias de trabalho e de privações. Com a força dos seus braços e muita da sua imaginação transformou tudo ali à sua volta. Foi a sua determinação e teimosia que o fez lutar até ao fim  e, ainda, a preocupação de dar aos filhos uma vida melhor que a sua. Ali arrancou o pão que os alimentou a todos e procurou ainda a água adormecida na aridez e profundidade da terra. Agora tudo era diferente.
- Porque será que Deus nos dá as coisas melhores no fim dos nossos dias? Agora podia viver melhor e sem tantos sacrifícios!...
- Vendo bem as coisas não pode queixar-se...Fez o que pôde.

O silêncio e a quietude das coisas aconchegavam-lhe os pensamentos. Sonhava como quem semeia ou construía como quem brinca.
Distraidamente meteu a mão no bolso e procurou o canivete. Agora era a sua companhia. Habituou-se a ele. Servia de faca ou de ferramenta de trabalho. Abria-o sempre que precisava e depois, no final, fechava-o e voltava a guardá-lo dentro do bolso direito das calças de fazenda bastante polida. Todas as manhãs, quando se vestia, certificava-se que o tinha ali consigo.

Viu, ali perto, um pedaço de cana verde que os netos, cansados da brincadeira, por lá deixaram. Foi buscá-la. Limpou-lhe o lixo e aqueles fios das folhas arrancadas à pressa. Os seus pensamentos seguiam a cana que se ia transformando nas suas mãos. Acertou as pontas com um corte mais delicado. A cana começava a brilhar por tantas voltas que lhe dava e sem querer começaram a criar entre eles uma história.

O tempo parou. A cana rodava cada vez mais e também se colocava em posições opostas. Por vezes, parecia ser ela a dar as ordens.
- Faz assim e depois assim...Desta maneira, fica melhor...Faz mais devagar para que eu me sinta bem nas tuas mãos cansadas.
Fez-lhe uma pequena cavidade a meio e depois outras duas mais abaixo e mais pequenas. Pareciam os botões do bibe do seu neto mais novo.
Levou-a à boca como que a dar-lhe um beijo. Afinal estavam cada vez mais próximos. Parece que a sua relação se acentuava em cada novo toque.

Finalmente soprou uma e muitas outras vezes procurando melhorar o som ou a transmitir-lhe a vida que lhe queria dar. Finalmente os seus dedos grossos e desajeitados foram tapando os buracos abertos e de cada vez saía uma nova melodia. Criou-se entre eles uma empatia e ambos estavam felizes. O velho fechou a navalha e guardou-a no fundo do bolso direito das calças. Nesse momento a flauta, sentindo-se livre e senhora daquelas mãos começou a dançar. Eram duas crianças embaladas no mesmo sonho soltando melodias simples e inexperientes.
Junho/2014
Luíscoelho


Nota texto revisto e reeditado em Junho de 2016

12 comentários:

  1. Que texto tão bonito e tão poético, Luís. Uma maravilha.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Que lindo ,Luis! Poesia pura! Ternura! abraços, chica

    ResponderEliminar
  3. Texto fabuloso. Gostei muito
    Parabéns :-)

    Beijo e um dia feliz.

    http://coisasdeumavida172.blogspot.pt/

    ResponderEliminar
  4. Duma cana com habilidade,
    numa flauta a transformou
    para a melodia da felicidade
    nela tocar enquanto durou!...

    Tenha uma boa tarde amigo Luís, um abraço,
    Eduardo.

    ResponderEliminar
  5. Oi Luis, mandei um comentário para você mas não foi aqui. Deu problema no meu computador e perdi o seu comentário e minha postagem. Se quiser fazer outra ficarei feliz, pois faz tanto tempo que não venho aqui, estou doente, vou fazer duas cirurgias.Eu não tive culpa, mudei até o modelo do blog.
    Obrigada
    Beijos
    Minicontista2 (Entrei pelo blog do Sol)

    ResponderEliminar
  6. Gosto sobremaneira dos teus contos cheios de poesia e ternura.
    Espero que voltes a publicar regularmente, como antigamente.
    Não quero acreditar que ficaste colado ao FB...
    Agradeço esta leitura tão agradável, amigo.
    Beijinhos para ti e família.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~

    ResponderEliminar
  7. Luis, um texto emocionante que muito nos diz, já que, se a vida não nos levar agora, chegaremos a essa situação; passados os problemas maiores, as dificuldades com a criação dos filhos, chega-nos um tempo em que poderiamos desfrutar melhor da vida e nao conseguimos; o meu pai, por exemplo não conseguiria fazer uma flauta e se lhe perguntar o que isso é talvez não saiba. Sem a lucidez que nos permita saber quem somos e conhecer as pessoas que moram connosco ou que nos visitam, é o pior que nos pode acontecer. Amigo, gostei muito. Um bom fim de semana. Um beijinho
    Emilia

    ResponderEliminar
  8. E que lindas flautas se fazem com a cana, faca e uma pitada de amor.
    Sim porque tudo o que fazemos com amor não tem como ter defeitos, amigo estou passando para lhe deixar mais uma vez o link do meu novo blogue, pois se há alguém que sabe dar valor a isto de perder um filho entre aspas você sabe bem porque um blogue é o filho amigo que dividimos com amigos e passantes.
    Deixo o meu beijinho de luz e muita paz. Nina (é só seguir o rasto)

    ResponderEliminar
  9. Uma história maravilhosa. Cheia de humanidade e muito poética. Gostei mesmo de o ler.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  10. Uma história encantadora, amigo.
    Gostei imenso de lê-la.
    Um abraço, amigo.
    Irene Alves

    ResponderEliminar
  11. Oi Luis
    Sumiu
    Agora quem vai sumir sou eu. Vou fazer uma das cirurgias. Dói demais
    Adoro seus contos e quando melhorar venho aqui para ler bastante.
    Beijos
    Minicontista2

    ResponderEliminar
  12. Gostei de ler "coisas" que vi, noutros tempos, serem passadas. Dir-te-ia nomes de Pessoas que admirei nestes temas e ainda venero dentro de mim.
    Seguramente foram acções que se repetiam, "naqueles tempos" de aprendizagem natural.


    Abraço
    SOL

    ResponderEliminar